Rev. Dr. Augustus Nicodemus Lopes
Chanceler da Universidade Presbiteriana Mackenzie
Chanceler da Universidade Presbiteriana Mackenzie
INTRODUÇÃO
Os
conceitos de liberdade de consciência e de expressão têm recebido crescente
atenção pública em nosso país em anos recentes. Entre as diversas causas, estão
o crescimento da pluralidade cultural, da diversidade religiosa e do
relativismo como fatores integrantes da sociedade brasileira. De que maneira as
pessoas podem ter e expressar suas convicções em um ambiente onde outros
indivíduos pensam e se comportam de maneira diversa dessas convicções? Essa
questão também faz parte do cotidiano universitário, especialmente em
instituições confessionais como o Mackenzie, que primam por princípios éticos
ao mesmo tempo em que sustentam a autonomia universitária.
O QUE É
LIBERDADE DE CONSCIÊNCIA E DE EXPRESSÃO
Acreditar
no que quiser é um direito intrínseco a cada ser humano. A consciência é foro
íntimo, inviolável, sobre o qual outros não podem legislar. Faz parte da nossa
humanidade termos nossas próprias ideias, convicções e crenças. E é daqui que
procede a outra liberdade, a de expressão, que consiste no direito de alguém
declarar o que acredita e os motivos pelos quais acredita de determinada forma
e não de outra. Nesse direito está implícito o que chamamos de “contraditório”,
que é a liberdade de análise e posicionamento contrário às expressões ou
manifestações de outras pessoas em qualquer área da vida. A liberdade de
consciência diz respeito ao que cremos, interiormente. Já a liberdade de
expressão é a manifestação externa dessas crenças.
OS FUNDAMENTOS DA LIBERDADE DE CONSCIÊNCIA E DE EXPRESSÃO
O direito
individual de pensar livremente e de expressar tais pensamentos é garantido em
todas as democracias do mundo ocidental.
A Constituição
No
Brasil, a liberdade de consciência e de expressão do pensamento é garantida
pela Constituição em vigor. Sua origem se encontra no caput do Artigo 5º,
“todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza”, sendo
assegurada a inviolabilidade dessa condição de igualdade. Se todos são iguais,
todos podem expressar suas ideias, pensamentos e crenças, desde que os direitos
dos outros sejam respeitados.
Ao tratar dos direitos e garantias fundamentais, a Constituição diz no Artigo 5º:
Ao tratar dos direitos e garantias fundamentais, a Constituição diz no Artigo 5º:
IV - é livre a manifestação do pensamento, sendo vedado o anonimato;
VI - é
inviolável a liberdade de consciência e de crença, sendo assegurado o livre
exercício dos cultos religiosos e garantida, na forma da lei, a proteção aos
locais de culto e a suas liturgias.
A liberdade de expressão religiosa é decorrente da liberdade de consciência e consiste no direito das pessoas de manifestarem suas crenças ou descrenças. Aqui se incluem adeptos das religiões, do ateísmo e do agnosticismo. Por ter origem na consciência, a liberdade de expressão religiosa inclui concepções morais, éticas e comportamentais, que são desenvolvimentos da crença individual. A separação entre Igreja e Estado no Brasil significa tão somente que nosso país não adota e nem protege uma ou mais religiões. O Estado é “laico”, mas, não sendo antirreligioso, ele garante o direito de seus cidadãos professarem publicamente e praticarem a religião que quiserem, assegurando-lhes que não serão discriminados por isso, conforme o mesmo Artigo 5º:
VIII - ninguém será privado de direitos por motivo de crença religiosa ou de convicção filosófica ou política...
Direitos Humanos
A
Declaração Universal dos Direitos Humanos de 1948 também se preocupou em
resguardar a liberdade de consciência e de expressão, particularmente a
expressão religiosa. O artigo 18 diz: Todo homem tem direito à liberdade de
pensamento, consciência e religião; esse direito inclui a liberdade de mudar de
religião ou crença e a liberdade de manifestar essa religião ou crença, pelo
ensino, pela prática, pelo culto e pela observância, isolada ou coletivamente,
em público ou particular. Entendemos que esse amplo reconhecimento das
liberdades individuais tem fundamento no fato, nem sempre considerado, de que o
ser humano foi criado por Deus.
A imagem de Deus
Do ponto
de vista da fé cristã, a liberdade de consciência decorre fundamentalmente do
fato de termos sido criados por Deus como seres morais livres. É uma das coisas
incluídas na “imagem e semelhança de Deus” com que fomos criados, de acordo com
o relato de Gênesis 1.26-27: Então disse Deus: Façamos o homem à nossa imagem,
conforme a nossa semelhança. Domine ele sobre os peixes do mar, sobre as aves
do céu, sobre os animais grandes de toda a terra e sobre todos os pequenos
animais que se movem rente ao chão. Criou Deus o homem à sua imagem, à imagem
de Deus o criou; homem e mulher os criou. O homem recebeu, por direito de
criação, a capacidade de julgar entre o certo e o errado e escolher entre os
dois. Ele podia livremente ponderar, analisar e, então, escolher. O fato de que
ele teria de arcar com as consequências de suas escolhas diante do Criador não
anulava, todavia, seu direito de fazê-las e defendê-las. É nisto que reside o
que chamamos de liberdade de consciência e de expressão. Como um ser criado, o
homem responde diretamente ao Criador pelo uso dessas liberdades. Ousamos dizer
que uma das influências decisivas para que essas liberdades fossem reconhecidas
no mundo ocidental veio da Reforma Protestante do século XVI. Os cristãos
enfatizaram a necessidade da separação entre a Igreja e o Estado, destacaram o
fato de que cada cristão tem sua consciência cativa somente a Deus e defenderam
o sacerdócio universal de todos os cristãos. Um exemplo dos esforços destes
cristãos para garantir a liberdade de expressão é o apelo de John Milton ao
Parlamento Inglês, em 1644, em defesa da liberdade de imprensa.1
OS LIMITES DA MANIFESTAÇÃO DO PENSAMENTO
Sociedades
plurais em países em que há separação entre Igreja e Estado sempre terão de
enfrentar o dilema entre a liberdade de manifestação do pensamento e os
direitos individuais. Se por um lado as leis brasileiras nos garantem a
liberdade de expressão, por outro, elas também preservam a honra e a imagem das
pessoas. Não se pode denegrir uma determinada pessoa em nome da liberdade de
expressão.
Falar e assumir
Conforme
reza a Constituição, uma das condições para que se manifeste livremente o
pensamento no Brasil é que a pessoa se identifique e assuma o que disse ou
escreveu. O anonimato anula a validade da expressão, ainda que ela contenha
méritos, pois sugere que o autor não tem dignidade e nobreza. Também denota que
essa manifestação não vem acompanhada da necessária responsabilidade pelo ato
praticado.
Contradizer e respeitar
Em
sociedades multiculturais e plurais, pensamentos, crenças e convicções que são livremente
expressos podem contrariar ou contraditar outros pensamentos, crenças e
convicções quanto aos valores morais, crenças religiosas e preferências
pessoais. Tais discordâncias, todavia, não podem ser vistas como formas de se
denegrir a honra e a imagem dos indivíduos de quem se discorda. Se assim fosse,
seria impossível a discussão de ideias e a apresentação do contraditório,
especialmente no ambiente da Universidade. De acordo com os princípios da fé
cristã, o amor a Deus e ao próximo são os maiores deveres de cada ser humano.
Amar ao próximo significa respeitar o nome, os bens, a autoridade, a família, a
integridade e a reputação das pessoas, independentemente das convicções
religiosas, políticas e pessoais delas. Os cristãos podem discordar das pessoas
e ainda assim manifestar apreço e respeito por elas. Quando cristãos deixam de
amar as pessoas ao seu redor, estão violando um dos preceitos mais conhecidos
de Jesus Cristo, que é amar ao próximo como a si mesmo. Os cristãos, na
verdade, devem ir além e amar inclusive os seus inimigos, conforme o próprio
Jesus ensinou (Mateus 5.44).
Livre mas não neutra
Em tudo
isso, há outro elemento que não pode ser ignorado, o fato de que o ser humano,
usando suas liberdades acima descritas, resolveu tornar-se independente de Deus
e viver uma vida autônoma. O livro de Gênesis (3.1-24) registra esse momento,
que na teologia cristã recebe o nome de "Queda", termo que indica que
essa busca de autonomia implicou em uma caída daquele estado original de liberdade
de consciência e expressão. Não que o homem tenha perdido essas liberdades –
ele ainda as mantém. Só que tanto a sua consciência quanto a sua capacidade de
julgar e escolher entre o bem e o mal, tendo abandonado a Deus como
referencial, são inclinadas ao mal, ao erro, ao egoísmo. E como decorrência,
sua expressão, embora livre, reflete essa tendência ao mal. Uma das
manifestações do impacto da Queda na liberdade humana é a tendência de se
procurar suprimir a liberdade dos que discordam de nós. Os que professam a fé
cristã devem reconhecer que todas as pessoas, inclusive aquelas que não
acreditam em Deus e que têm práticas contrárias à ética cristã, têm o direito
fundamental de pensar e acreditar no que quiserem e de viver de acordo com suas
crenças. Os cristãos entendem também que se manifestar contrariamente ao que
pensam e fazem essas pessoas não é incitamento ao ódio, mas o exercício desse
mesmo direito fundamental. Aqui citamos o dito de Voltaire, "não concordo
com uma só palavra do que dizeis, mas defenderei até a morte vosso direito de
dizê-lo."2 Essa frase fala tanto do direito que temos de
discordar dos outros quanto do direito que os outros têm de discordar de nós,
direitos pelos quais deveríamos estar dispostos a lutar, uma vez que, perdidos,
deixam a todos amordaçados.
LIBERDADE, RESPONSABILIDADE E CIDADANIA
Como
Universidade confessional, o Mackenzie busca, conforme seu Estatuto, "a
adoção de um Código de Ética baseado nos ditames da consciência e do bem, que
reflitam os valores morais exarados nas Escrituras Sagradas, voltados para
exercício crítico da cidadania" (Artigo 3º). Os termos do artigo citado
frisam as bases da visão ética dessa Escola em prol da preservação da dignidade
do homem: a iluminação pela Palavra de Deus e a consideração da consciência
para o exercício livre de sua manifestação na sociedade. Ao mesmo tempo, o
Mackenzie também respeita a consciência de cada um de seus alunos, como diz o
Estatuto, "A assistência espiritual à comunidade universitária, respeitada
a consciência de cada um, é proporcionada pela Capelania Universitária, em
conformidade com a natureza confessional presbiteriana" (Estatuto, Artigo
67). Liberdade de consciência e de expressão são privilégios do ser humano por
direito de criação. Jamais podemos abrir mão deles sob risco de diminuirmos
nossa humanidade e a imagem de Deus em nós. __________________
1MILTON,
John, Areopagitica: Discurso pela Liberdade de Imprensa ao Parlamento. Editora
Topbooks, 1999. Rio de Janeiro, RJ.
2Voltaire
(François Marie Arouet, 1694-1778), um dos mais famosos filósofos do
Iluminismo, ficou conhecido por sua batalha incessante em prol das liberdades
civis, especialmente da liberdade religiosa.
OBRAS RECOMENDADAS
ALTHUSIUS, Johannes. Política. Rio de Janeiro: TopBooks, 2003.
ASH, Timothy
Garton. Nós, o Povo: a Revolução de 1989 em Varsóvia, Budapeste, Berlim e
Praga. São Paulo: Companhia das Letras, 1990.
BARBOSA,
Rui. A Imprensa e o Dever da Verdade. São Paulo: Com-Art, 1990.
HAVEL,
Václav. Entrevista a Distância. São Paulo: Siciliano, 1991.
KUYPER,
Abraham. Calvinismo. São Paulo: Cultura Cristã, 2002.
MILTON,
John. Areopagitica: Discurso pela Liberdade de Imprensa ao Parlamento. Rio de
Janeiro: Topbooks, 1999.
ORWELL,
George. A Revolução dos Bichos. São Paulo: Companhia das Letras, 2006.
POLANY,
Michael. A Lógica da Liberdade. Rio de Janeiro: Topbooks, 2003.
SCHAEFFER, Francis. "Um Manifesto
Cristão" in: A Igreja no Século 21. São Paulo: Cultura Cristã, 2002, p.
157-239.
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